segunda-feira, 5 de novembro de 2012

DEIXANDO O PAGO

Gravura de Vasco Machado

DEIXANDO O PAGO
João da Cunha Vargas

Alcei a perna no pingo
e saí sem rumo certo,
olhei o pampa deserto
e o céu fincado no chão.
Troquei as rédeas de mão,
mudei o pala de braço
e vi a lua no espaço
clareando todo o rincão.

E a trotezito no mais,
fui aumentando a distância
deixando o rancho da infância
coberto pela neblina;
Nunca pensei que minha sina
fosse andar longe do pago
e trago na boca o amargo
dum doce beijo de china.

Sempre gostei da morena,
é minha cor predileta,
da carreira em cancha reta,
dum truco numa carona,
dum churrasco de mamona,
na sombra do arvoredo,
onde se oculta o segredo
num teclado de cordeona.

Cruzo a última cancela
do campo pro corredor
e sinto um perfume de flor
que brotou na primavera.
À noite, linda que era,
banhada pelo luar,
tive ganas de chorar
ao ver o meu rancho tapera.

Como é linda a liberdade
sobre o lombo do cavalo
e ouvir o canto do galo,
anunciando a madrugada...
Dormir na beira da estrada
num sono longo e sereno
e ver que o mundo é pequeno
e a vida não vale nada.

O pingo tranqueava largo
na direção de um bolicho,
onde se ouvia o cochicho
de uma cordeona acordada;
Era linda a madrugada,
a estrela d'alva saía
no rastro das três marias,
na volta grande da estrada.

Era um baile, um casamento,
quem sabe algum batizado...
Eu não era convidado
mas tava ali de cruzada.
Bolicho em beira de estrada
sempre tem um índio vago,
cachaça pra tomar um trago,
carpeta pra uma carteada.

Falam muito no destino,
até nem sei se acredito,
eu fui criado solito
mas sempre bem prevenido,
índio do queixo torcido,
que se amansou na experiência.
Eu vou voltar pra querência,
lugar onde fui parido.


SINA TROPEIRA

SINA TROPEIRA
(Luciano Salerno)

“Era boi...
toca, toca...
...Olha a estrada boi...”

A garganta firme...
os olhos fixos buscando
o destino a chegar,
a tropa seguindo o ponteiro
no compasso do cincerro
na sua sina de andar;

            Assim...
            passou a vida “Dom Olivério”
            cruzando vaus, coxilhas e canhadas
            reculutando gado alçado
no rumo das charqueadas.

No pouso, fogo grande,
adoçando as melodias
chiar de cambonas...
e os aboios solitários...
sustentando cada quarto de ronda.

E quando a aurora entreluzia a manhã
pela imensidão da pampa,
“Dom Olivério” com a tropa encordoada
e a alma “ajoujada” nos arreios
seguia para mais uma jornada.

“Venha boi...
toca, toca...
...olha a estrada boi.!”

Enfim... o destino final;
- O boi, o fio das facas lhe cobre!
- O homem, na busca dos cobres!
Pois este era o destino de ambos,
galgar por campos, serras e várzeas
deixando um pouco de si para o tempo
e a vida pelas estradas.

E nesta sina de ir e vir,
o tempo foi marcando seu semblante
na dinastia de tropear.

“Dom Olivério”...
viu surgir os fios do alambrado
e pouco a pouco foi escasseando o gado;
Pois o progresso...
trouxe a linha de ferro e o apito alto,
depois, o caminhão ponteiro pela fita do asfalto.

...Silêncio na estrada real...
...não mais o ....“Era boi...”
... perdeu-se no tempo o seu “Dom”
quando emalou o poncho...
...e se foi... ser mais um retirante,
...mais um cargueiro de sonhos
... com cincerros de prantos a tocar,
nas ânsias de quem não tem...
...mais estrada a cruzar.

O rancho virou tapera!
O caminho das tropas em estradas,
os pousos em cidades,
tudo mudado para outra realidade!

            E hoje "Olivério" é ponteiro
da comitiva de outro labutar,
um campo celeste...
...o fez compreender...
porquê do estradear.

Sim! A vida e a estrada,
os seus valores reais lhe ensinou...
...nas lembranças de um tempo tropeiro...
*...que foi o seu tempo...
*...e acabou!

 

Agora...
reponta estrelas nesta sina tropeira
que herdou dos ancestrais;
Fazendo ronda de lua em lua...
...e sumindo no horizonte...
...nos crepúsculos matinais!

*Do poema “Silêncios de um fim de tarde ”
de Guilherme Collares.

PROSEADAS SOLITAS

PROSEADAS SOLITAS
José Luiz Flores Moró

Antes...
Bem antes da luz da madrugada,
Na hora tranqüila em que a peonada
Busca sonos nos campos das lonjuras,
O velho encontra vidas no galpão,
Conversando com o próprio chimarrão
No dialeto gauchesco das procuras!

Não...
Não que ele seja assim o tempo inteiro,
Mas na hora em que só o mate é companheiro
Ele rebusca os seus fantasmas do passado
E proseia! Meu Deus! Como proseia!
Contando causos antigos de peleias
E façanhas de pingos mal domados!

Embora os olhos parados no horizonte,
É visível, nessa imensa solitude,
Um trejeito feliz na face rude,
Com a lembrança repentina dos caudilhos.
O chimarrão irmana os peleadores
- Fraterno abraço entre Onório e Flores,
Em transmissão de paz para seus filhos!

No ritual de bater tições,
As faíscas são reses de tropeadas
Que se perderam na poeira das estradas,
Em um tempo qualquer que já se foi;
Mas que o velho traz para o presente
E assopra para o alto, de repente,
Num grito saudoso de "Eira-boi"!

Nos olhos de lágrimas ardidas
Reencontra, nas tropeadas obscuras,
As mesmas horrendas criaturas
Que povoaram seus medos de criança.
E esconjura esses fantasmas de guri,
Como se as mulas-sem-cabeça e os sacís
Não fossem apenas páginas da infância!

Pousa o olhar cansado e absorto
No tremelico das sombras do candeeiro,
E recorda vividos entreveiros
No comando de cargas e investidas;
Gritando, numa síncope caudilha,
Brados que a epopéia farroupilha
Fez valerem mais que muitas vidas!

E passeia por um mundo que é só seu,
Até que a noite, matiz de picumã,
Incendeia-se nas barras da manhã.
E o galpão se transcende em realidade.
Então o velho volta a ficar mudo,
Mas, mesmo assim, consegue dizer tudo,
Com os olhos molhados na saudade!

E quando o piazito diz: - Vovô, conta uma estória,
Dessas que o senhor inventa muitas vezes:
De brigas, de tropeadas e de reses...
Dessas que só o senhor sabe inventar!
Então o velho levanta os olhos suavemente
E murmura para o neto, indiferente,
- Deixa pra lá... Você não vai acreditar...



ADEUZINHO

ADEUZINHO

Tadeu Martins

Vou preparar minha estrada para o trote.

Não pense que ficarei só.

Vou trazer estes adondes para mim.

Uma coisa me consola
que o chimarrão me diz
as identidadezinhas da perfeição
moram no galpão do fundo do perceber.
(Por isso gostaria de ter 7 olhos
e me chamar Soma da Silva).

Mas não
ando com o bocó cheio de saudade
dividindo o primeiro passo
com o pensar.

O tempo sempre me conversa
de que somos etecetera.

O que preciso mesmo
é distribuir caramelos aos duendes,
pendurar uma figa nos arreios,
cuspir o veneno do mate na brasa
e convidar um santo para matear.

Não vou mais dar bóia para a ausência.
Enfeitarei meu rancho de alegria.

Me basta a boa fé
total.
A vida é simples como um adeus.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

QUE DIACHO! EU GOSTAVA DO MEU CUSCO!

Gravura: Marciano Schmitz

QUE DIACHO! EU GOSTAVA DO MEU CUSCO   
Alcy Cheuiche

Entendo. Envelheci entendendo.
Bicho não tem alma, eu sei bem,
mas será que vivente tem?

Que diacho! Eu gostava do meu cusco.
Era um guaipeca amarelo,
baixinho, de perna torta,
que me seguiu num domingo,
de volta de umas carreiras.

Eu andava meio abichornado,
bebendo mais que o costume,
essas coisa de rabicho, de ciúme,
vocês me entendem, ele entendeu.

Passei o dia bebendo
e ele ali no costado
me olhando de atravessado,
esperando por comida.

Nesse tempo era magrinho
que aparecia as costela.
Depois pegou mais estado
mas nunca foi de engordá.

Quando veio meu guisado,
dei quase tudo prá ele.
Um pouco, por pena dele,
e outro, que nesse dia,
só bebida eu engolia
por causa dos pensamento.

Já pela entrada do sol,
ainda pensando na moça
e nas miséria da vida,
toquei de volta prás casa
e vi que o cusco magrinho
vinha troteando pertinho,
com um jeito encabulado.

Volta prá casa, guaipeca!
Ralhei e ralhei com ele.
Parava um pouco, fugia,
farejava qualquer coisa,
depois voltava prá mim.
O capataz não gostou,
na estância só tinha galgo,
mas o guaipeca ficou.

Botei o nome de sorro,
as crianças, de brinquinho,
mas o nome que pegou
foi de guaipeca amarelo.

Mas nome não é o que importa.
Bicho não tem alma, eu sei bem.
Mas será que vivente tem?

Ficou seis anos na estância.
Lidava com gado e ovelha
sempre atento e voluntário.
Se um boi ganhava no mato,
o guaipeca só voltava
depois de tirá prá fora.

E nunca mordeu ninguém!
Nem as índia da cozinha
que inticava com ele.
Nem ovelha, nem galinha,
nem quero-quero, avestruz.
Com lagarto, era o primeiro
e mesmo pequeninho
corria mais do que um pardo.

E tudo ia tão bem...
Até que um dia azarado
o patrãozinho noivou
e trouxe a noiva prá estância.

Era no mês de janeiro,
os patrão tava na praia,
e veio um mundo de gente,
tudo em roupa diferente,
até colar, home usava,
e as moça meio pelada,
sem sê na hora do banho,
imagino lá no arroio,
o retoço da moçada.

Mas bueno, sou doutro tempo,
das trança e saia rodada,
até aí não tem nada,
que a gente respeita os branco,
olha e finge que não vê.
O pior foi o meu cusco,
que não entendeu, por bicho,
a distância que separa
um guaipeca de peão
da cachorrinha mimosa
da noiva do meu patrão.

Era quase de brinquedo
a cachorrinha da moça.
Baixinha, reboladera,
pêlo comprido e tratado,
andava só na coleira
e tinha medo de tudo,
por qualquer coisa acoava.

Meu cusco perdeu o entono
quando viu a cachorrinha.
E les juro que a bichinha
também gostou do meu baio.
Mas namoro, só de longe
que a cusca era mais cuidada
que touro de exposição.

Mas numa noite de lua,
foi mais forte a natureza.
A cadela tava alçada
e o guaipeca atrás dela
entrou por uma janela
e foi uma gritaria
quando encontraram os dois.

Achei graça na aventura,
até que chegou o mocito,
o filho do meu patrão,
e disse prá o Vitalício
que tinha fama de ruim:
Benefecia o guaipeca
prá que respeite as família!
Parecia até uma filha
que o cusco tinha abusado.

Perdão, le disse, o coitado
não entende dessas coisa.
Deixe qu'eu leve prá o posto
do fundo, com meu cumpadre,
depois que passá o verão.
Capa o cusco, Vitalício!
E tu, pega os teus pertence
e vai buscá teu cavalo.

Me deu uma raiva por dentro
de sê assim despachado
por um piazito mijado
e ainda usando colar.
Mas prometi aqui prá dentro:
mesmo filho do patrão,
no meu cusco ninguém toca.
Pego ele, vou m'embora
e acabou-se a função.

Que diacho! Eu gostava do meu cusco.
Bicho não tem alma, eu sei bem.
Mas será que vivente tem?

Campiei ele no galpão,
nos brete, pelas mangueira
e nada do desgraçado.
No fim, já meio cansado,
peguei o ruano velho
e fui buscá o meu cavalo.

Com o tordilho por diante,
vinha pensando na vida.
Posso entrá numa comparsa,
mesmo no fim das esquila.
Depois ajeito os apero
e busco colocação,
nem que seja de caseiro,
se nã me ajustam de peão.
E levo o cusco comigo
pois foi o único amigo
que nunca negou a mão.

Nisso, ouvi a gritaria
e os ganido do meu cusco
que era um grito de susto,
de medo, um grito de horror.
Toquei a espora no ruano
mas era tarde demais.
Tinham feito a judiaria
e o pobrezinho sangrava,
sangrava de fazê poça
e já chorava fraquinho.

Peguei o cusco no colo
e apertei o coração.
O sangue tava fugindo,
não tinha mais esperança.
O cusco foi se finando
e os meus olho chorando,
chorando como criança.

Que diacho! Eu gostava do meu cusco.
Bicho não tem alma, eu sei bem.
Mas será que vivente tem?
Nessa hora desgraçada
o tal mocito voltou
prá sabê pelo serviço.
Botei o cusco no chão,
passei a mão no facão
e dei uns grito com ele,
com ele e com o Vitalício!

Ele puxô do revólver
mas tava perto demais.
Antes que a bala saísse,
cortei ele prá matá.
Foi assim, bem direitinho.
Não tô aqui prá menti.
É verdade qu'eu fugi
mas depois me apresentei.
Me julgaram e condenaram
mas o pior que assassino,
foi dizerem que o motivo
era pouco prá o que fiz...

Que diacho! Eu gostava do meu cusco.
Bicho não tem alma, eu sei bem.
Mas será que vivente tem?